Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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terça-feira, setembro 02, 2003

Madrugada do desejo

Marta. Doce Marta. A sua doce Marta. A Marta que enchia os seus sonhos de cor-de-rosa. A sua primeira namorada. Aos 8 anos o seu primeiro beijo. Na cara. Atrás da escola primária. Um rubor facial inesquecível. Durante um ano provou o doce sabor do andar de mão dada e dos beijos nos lábios. Aquela doce e inocente relação acabara ao fim de um ano. Marta mudou de escola. O último encontro foi na festa de final de ano, na escola primária, por trás do mosteiro. Os dois, lado a lado, no centro da mesa. Um casamento encenado pela classe. Uma delícia. A brincadeira das brincadeiras. Acabou com um adeus a um automóvel em movimento, vidros fechados. A imagem Marta, chorosa, confundia-se com o reflexo dos contornos manuelinos na janela do carro. O andamento lento do veículo transformou as janelas num céu pesado, cor de chumbo. Denso, ameaçador. Milagres da óptica, reflexos distorcidos que ele jamais esqueceu. Choveu na altura. Chorou o resto do dia, escondido dos amigos e dos seus gritinhos de escárnio. "mariquinhas, mariquinhas"

Dez anos passados e ele volta a encontrar a Marta. Sozinha numa esplanada da baixa. Jamais poderia esquecer aquela face de anjo. Marta tremia com um cigarro na mão. 18 anos. Pálida e triste. Olhos vazios a olhar um objecto invisível algures entre ela e a velha parede de um banco em obras. Ele hesitou. Pensou que não deveria estragar uma memória de um adocicado eterno. Tinha um aspecto decadente. Nada parecida com as suas amigas de faculdade. Todas joviais, coradas e idealistas. Marta parecia um icon de desilusão. Uma imagem gasta, um cartaz de uma peça de teatro de 1987 na parede de uma casa em ruinas. Marta era esse cartaz. O estático tremido. Em tempos vigoroso e importante. Hoje uma imagem de desgosto.

Ele ficou ali a olhar. Marta foi-se embora. Saiu e desceu a rua. Os enfeites de Natal não reflectiam em si. Marta absorvia a luz. Magra. Como um esqueleto. Mal arranjada. Um maltrapilho. Ele chorou uma lágrima invisível e dentro de si quebrou-se a ilusão que mantinha. O cor-de-rosa desfez-se. Anos depois ainda tinha pesadelos. Monstros que comiam sonhos roubavam-lhe o prazer do imaginário inconsciente.