Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

segunda-feira, julho 25, 2005

Sexualidade (o renascer)

Anos antes do mítico incidente do pancreas de Dusseldorf ela era dada à inovação. O seu sentido de negócio para nichos era bastante inspirado. Mas, tal como nas emoções, quando as coisas são pessoais há um "mix fodido" (como ela diz) que nos cega a objectividade. A ideia era estranha: uma casa de sandes de fruta, sendo o best-seller a sandes de pêssego panado. Usando pêssegos em calda misturado com pão ralado acido-picante, conseguia uma iguaria digna de qualquer monarca vegetariano. O negócio cedo empalideceu, obscurecido pela mesma razão que o fez florescer: a busca da novidade, doença social crónica dos vira casacas metropolitanos da actualidade.

Afogada em dívidas, lá ia alimentando a depressão no seu T0 no 14º andar, observando as felizes formiguinhas que se passeavam em rebanhos de êxtase. Um dia teve um pico de líbido ao colocar um frango no forno e a sua energia sexual atingiu picos inéditos até então. A imagem do frango de rabo para o ar, roliças pernas abertas e todo untado nunca mais de dissociou do conceito de sexo e, com o tempo, aprendeu a perdoar-se da sua insanidade.

sábado, julho 23, 2005

(outr)A história de Chibita

Chibita era arruaceiro. Era o seu super-poder. Chibita integrava-se num grupo depois de espancar um inimigo de um membro influente. Quando fazia jeito o músculo, Chibita era tratado como rei, a quem eram ofertadas abundantes dádivas de uma resina de planta. Chibita era moldado à força de murro. Duro nas ruas, mas quando convidado a lanchar em casa de um amigo de tendências familiares de suburbia, Chibita derretia nas mãos das mães dos amigos. "Diz ao teu amigo que leve uns bolos para a vaigem!" O cheiro a fertilidade e trigo cosido numa cozinha de um núcleo familiar estável era a sua posição fetal.

De volta a casa, cinzentos blocos maximizadores de espaço, Chibita olhava o espelho e fazia a sua cara de pena. Pena dele próprio. Depois de ver um episódio de "Norte e Sul" com a mãe divorciada e desempregada, Chibita ia para o quarto. Já em pijama, desprovido de qualquer insígnia Death Metal, colocava em volume empalidecido o vinil do Vanila Ice que a irmã tinha comprado pela Páscoa, com o dinheiro do folar.

Detestava fins de semana, quando tinha que palmilhar quilómetros à procura dos amigos em todos os bares e casas de "flippers". "Ah, é o Chibita. Pois. Olha, o meu filho não está, pois... Não sei onde terá ido!"Pois é.... Chibita sabia que estavam em casa, mas nunca arriscaria ficar sem amigos. Uma vez estava à porta da sala de máquinas, fumando clandestinamente um cigarro, e uma carrinha carregada de gado passa pelo meio daquela rua apertada. Um seu amigo que se encontrava demasiado perto da estrada apanhou com um espelho de camião nas costas. Eram aqueles camiões de caixa larga, com espelhos muito saídos para compensar o enorme volume. O amigo de Chibita caíu ao chão. Apressou-se a largar o seu cigarro, com medo de atrair conhecidos para a cenas do acidente. Chibita correu atrás do camião. O camião virou para uma outra rua. Chibita mudou também, e assim que se viu fora do alcance visual dos amigos, Chibita sentou-se ali ficou agachado. Passado um bocado, voltou a correr a fingir-se cansado. Disse ao seu amigo que danificou a parte lateral da cabine do camião com uma pedra. Riram para disfarçar a criancisse. Por dentro todos gritavam pela mãe. Por fora mandavam as caveiras do Death Metal e a imitação dos gritos guturrais dos seus ídolos. Riam nervosos...

(um)A história de Chibita

Chibita era o típico puto arruaceiro que todos tiveram como amigo ou como conhecido. Uma vez tentou assaltar um velhote apenas porque lhe disseram que levava com ele 100 contos. Por 100 contos, Shibita era capaz de sujar as mãos em anonimato. Na sua fase Death Metal chegou a entrar numa igreja gritando "Satanás!" com todo o potencial que os seus pulmões permitiam. Para seu azar, as vizinhas contaram à sua mãe o que lhe valeu um valente ensaio de cinto. Mais velho começou a "engatar". Com um estilo datado e pré-fabricado, ora era Tom Cruise em Cocktail como passava rapidamente a Conan o Bárbaro. Engatou pouco, pobre rapaz, mas uma briga por semana (pelo menos) tinha orgulho em manter.

Um dia estava à boleia para a praia. Sozinho, como sempre. O Chibita é daqueles miúdos que nunca anda acompanhado. Vai sempre "lá ter". Voltava sempre sozinho também... Como dizia, estava à boleia e encostou um tipo num Opel Mantra. Azul desbotado. Parecia o Wolverine que o conduzia. Chibita entrou, sentou-se e agradeceu. O Wolverine português olhou para ele perplexo. Nem havia dado conta da sua entrada. Gaguejou algo e depois articulou qualquer coisa parecida com "Rapaz, eu estou estacionar!".

sexta-feira, julho 15, 2005

Mensagens do futuro

Ele recebera mensagens do futuro. Pelo que me disse era algo que vinha a acontecer há algum tempo. Não teria havido trauma ou acontecimento potencialmente endutor de tal anomalia. Ele recebia as mensagens e lá ia ignorando ou aceitando o seu conteúdo consoante o que a sua atormentada personalidade escolhesse. Por vezes negava completamente algo ou simplesmente dizia que era um simples sonho. Às vezes o futuro era um mundo definhante, sem astronautas, sem roupas de alumínio ou migrações massivas interplanetárias. Era sujo e seco... Como aqueles lagos cinzentos de lama seca que forma puzzels bizarros. Ele não era dado a sentimentalismos, mas isto de saber que andamos aqui só para aquecer, mesmo que um milhão de anos no futuro, não agrada a ninguém.

Algumas revelações que ele me contava eram perdidas por mim num onda de quase total alheamento. Desde o cliché da mancha da parede àquelas situações em que pensava "Merda, o imposto era para pagar até hoje", passando pela azia que me provocara a lasanha do almoço. Ficou-me, no entanto, cravada no cérebro a ideia de que a preservação do panda iria criar um espécie geneticamente modificada altamente procriadora e imune a todas as maleitas que os apoquentam actualmente. Essa espécie iria criar um praga global que iria, em primeira instância, colocar o bambu à beira da extinção.

quarta-feira, julho 06, 2005

Um pâncreas em Dusseldorf

Era tarde quando o telefone tocou. O cheiro a terra molhada da miúda chuva de Verão entrava pela velha janela. As paredes descascadas assombravam a casa vazia. O telefone jazia ali no meio da sala, reanimado abruptamente pelo energética vontade de distribuir notícias frescas. Do outro lado um voz ofegante tentava recuperar o fôlego. Ela havia sido atingida por um pâncreas no centro de Dusseldorf. Ainda pingava sangue. Uma equipa de psicólogos tentava ajudar. Em pânico tentou explicar-me que não sabia o que tinha acontecido, ou como tudo estava a ser demasiado surreal.

Disse-me que teve uma crise de pânica e gritou "Pâncreas" em plenos pulmões. Apareceu um polícia e só conseguia dizer "Pâncreas". Essa foi a única palavra que disse até à esquadra.

Meio adormecido tentei falar em vão. Procurei uma acalmia para meter uma frase que me foi recursivamente negada. Continuou a gritar, enquanto atrás e ouviam vozes semelhantes àqueles filmes da 2ª guerra mundial onde os generais nazis falam todos inglês. Esperei pelo final da cacofonia. Não precisava de me ouvir. Precisava de falar. Desligou.

Peguei no telemovel e mandei-lhe um SMS. "Como raio soubeste tu identificar um pâncreas?"

terça-feira, julho 05, 2005

Castor Reborn

Flui o nada no vazio

Assustado fixou o olhar na luz alaranjada que respingava preguiçosa por entre as cortinas. Foda-se!, pensou. Tanto tempo passara e ainda assim não tinham brotado cinzas de si. Mesmo no esquecimento e na pacatez do universo interno... Mesmo aí, onde nem ele próprio caminha em segurança. Mesmo nos locais que só ele conhece, mesmo no pós-útero, mesmo de mão dada com a alma. Mesmo fugindo e desaparecendo, mesmo criando um labirinto de dor e opressão, mesmo fazendo churrascos ao sábado, mesmo ouvindo pop, mesmo passando fins de semana com os sogros e sorrindo aos primos longínquos.

Mesmo depois de tudo o turbilhão voltou. Efervescente, mas não agressivo. Teimoso, quase violador. Pega nessa merda!, ouviu no escuro... Acordou banhado em suor, em plena orgia barroquina, com uma maçã na boca e um exemplar original de Sade na mão esquerda. O vazio voltou, havia que o documentar!

segunda-feira, outubro 04, 2004

A alma do mundo
Carcere espelhada forrada a finas sedas

Numa sociedade próspera, algures num futuro victoriano, presente para alguns, existe um povo invisível. Abaixo do nível dos olhos, oculto, onde ninguém nunca procura. Deitados, esfarrapados, sujos, feios, desdentados, de mão esticada e unhas encardidas. Estátuas de pano velho, prostadas em poses de escultura romana, sobre estruturas de carne deformada. A azáfama das infantarias orientais abafa os gritos, duas oitavas abaixo, imperceptível ao novo humano, ao info-humano. Dois plebeus discutem assuntos mundanos, cheirando o vento. O povo invisível estica os braços, atravessando um imensidão de réstias humanas, não bio-degradáveis:
Uma vitória da estatística, a nova raínha da corte. O conceito do tempo real assíncrono.

- Viste aquilo?
- Não.

sexta-feira, setembro 24, 2004

Mix 23
Molotov com framboesa

Era gago, quase surdo e tinha saudades da avó. Desde o dia em que se viu numa casa de banho de um colega, sem papel higiénico e sem coragem para pedir, que evitou convivio social.

Viajou um dia pelas margem de um vasto rio da América do Sul, acompanhado por um crocodilo que adoptou como animal de estimação. Mascou as folhas de Yemet-kuy e jurou que os deuses o puxavam para o seu seio. Reparou depois que o seu animal de estimação, Toby, se tinha servido da sua perna para jantar. Assim sem pedir. No fim procurou o seu calor para uma sesta digestiva. Ele acabou por morrer por perda de sangue, mas o crocodilo ainda se aguentou umas semanas. Era uma zona livre de abutres. Os gases da nova usina, diziam.

domingo, agosto 29, 2004

Avô sentado no sofá, em chamas

(...) Serás sempre gente, meu filho. Até ao dia que to neguem por decreto de lei. (...)

Epílogo
O ante-projecto de fim


Nas condições físicas ideais, se olhares em frente vais ver-te por trás... em todas as épocas do tempo. E não é um por ano ou por segundo. Isto é analógico rapaz, não divides o segundo por 25. É mais contínuo e fásico...

Planeta Dolmén
O povo-só

Julgava ver morcegos nas câmaras de vigilância da auto estrada. Achava-se ainda mais ridícula por não ter uma obcessão paranóica exclusiva. Fazia parte de um grupo de ajuda para a recuperação de pessoas que vêem morcegos nas câmaras de vigilância da auto estrada.

Go get your knife!

Pediu que a levassem ao médico no dia em que julgou ter descoberto o padrão da sua vida numa sequência de gritos em clímax de uma música dos Deftones. O gráfico de frequências, impressas numa jacto de tinta parecia comprovar o facto.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Expresso Trans-Goya
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Era aquele homem que afirmara ter visto uma criança a chorar, sentada nos anéis de Saturno. Tinha uma perna desfeita, devorada por algo. Gotículas de sangue perfeitas flutuavam em gravidade zero em volta do seu corpo, atraídas pela sua minúscula massa. Aquele homem barbudo tinha uma mancha em redor da boca. Diz-se que assim ficou pela imagem de horror da criança perdida no espaço.

"Era uma criança normal. Empunhava um controlo remoto e apontava o planeta. Disse-me que poderia acabar com a nossa verdade, com o nosso infinito. Podia destruir as nossas certezas carregando num botão."

sábado, agosto 21, 2004

Ensaios 98nn.23b: Andrómeda aqui tão perto
Uma lição de paciência


Discurso

sexta-feira, agosto 20, 2004

O punho de Deus
A sombra de uma dor latente

O comboio passava por um bairro degradado de crianças encardidas sentadas em sofás a apodrecer, virados para a linha-férrea. O chão estava pejado de lixo, reciclagens de reciclagens de reciclagens, usados até à quase desintegração natural. Eram crianças de olhar vivo, brilhante, desiludidas com a vida. Ocasionalmente, por entre o sujo da cara surgiam pequenos regatos de límpida pele, sulcados à força de lágrimas recentes.

Ao meu lado o velho cigano continuava a sua odisseia de feitos hercúleos, palrando incessantemente como se não houvesse amanhã. Falava-me de uma ilha grega, onde morara nos anos 60. Um verão em que a natureza castigou o povo, um verão de vingança atroz. As tréguas homem/mar haviam sido corrompidas, quando um grupo de embriagados e jovens pescadores voltou a casa com peixe sagrado. Na ira do verão o céu escureceu e uma densidade dramática foi transferida por telepatia para o consciente colectivo daquela velha comunidade assustada. Alguns falavam de profecias, interrompidos abruptamente por uma ocasional chapada na cara. Sim, porque era povo temente, mas não eram estúpidos.... As mulheres rezavam, as crianças choravam e os homens, do promontório, olhavam o mar, pediam perdão ao seu estilo macho de peito ao léu. De repente, do nada, o mar revolta-se. Uma imensa onda forma-se no horizonte, o punho do Deus irado. Impotentes, quedaram-se a olhar, enquanto galopava na sua direcção a velocidades vertiginosas. Alguns repararam que vinha polvilhada de pontos escuros, semi lúcidos, impossíveis de distinguir, mesmo por debaixo do azul transparente daquela tépida água mediterrânica. Mas, para alívio da população, a onda pára de repente, em plena formação de 15 metros de altura. As respirações de alegria são curtas, porque de repente os pontos escuros começam a tomar forma e a emergir de dentro das águas, propulsionadas pela inércia do movimento das águas. Milhares de peixes espada são disparados, como que por canhões, em direcção à costa. O povo grita, foge, procura abrigo. Espadartes imensos voam como uma nuvem de flechas de um exército chinês de esplendor Ming.

Dezenas de casas destruídas. Dezenas de pescadores empalados por espadartes. Foi um dos muitos fenómenos não documentados daquela cheia vida do velho cigano.

quarta-feira, agosto 11, 2004

O meu tio Gaspar procura a prova científica acerca do infinito
[crónicas do tio Gaspar - dia 1]


Larga avenida esta que subi. Realmente os tons amarelados tendem a suavizar a violenta paisagem urbana, dita histórica. Duvido que este amarelo aguente, mas também vos digo sinceramente que provavelmente nunca mais cá voltarei. Podem crer que não... Que gente reles, que estranhos costumes. À mesa parecem selvagens, a conduzir parecem alucinados tresloucados, só acidentes já vi seis. E um era bem feio. Isto não é para estar a armar-me em fino, mas ainda não vi ninguém a usar peles. Nesta altura de frio e com o mercado em alta, como podem abdicar. Quer dizer, já vi milhões destes selvagens e ainda nem uma vestida de pele. E as marcas são todas a imitar ou falsificações. Que horror.

Cheira mal. E é tudo guardanapos de papel.

segunda-feira, agosto 09, 2004

Um guião Barrosino, o Danúbia de las Ventas
17/8 de trás para a frente

[Silêncio, estamos a gravar...]
Um grito que dura décadas. Modulado ao longo de um túnel metálico, criando harmónicos míticos, sons que se enfiam na pele. Dentro da carne. Escondidos num baú de arquivo morto. A imagem de fora é irreal, trombónica, mono-tom. Azul codreado. É lento como o tempo, como a sua escala de areia pura. Um virtuosismo de sumptuosidade e magnificiencia. Irreal, como os tonificadores musculares da Gigashop.TV....
[Corta]
[Segunda aproximação à mesma cena, versão medieval instruído]
[Silêncio, estamos a gravar...]
Dizia-me hoje uma entidade oculta que prezo pela discrição, que os maestros que fazem bandas sonoras para os filmes de terror desistem do conservatório antes de chegarem às teclas pretas. Retorqui que também o Michael Nyman o faz, disse, mas toda a gente interpreta como opção artística. "segredos, meu caro" e esfumou-se numa fina camada de pó azul, levitando em espiral inversa.
[Corta]
Bebi martinis o resto da noite e preocupáva-me com uma falta de memória que tive o mês passado. Era pôr-do-sol, como no cinema, mas aqui parecia mais real... Matutava num erro de acentuação que lera hoje, algures num guião.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Semi-lividez. Holo-Eu, cyber-consumo de bolacha americana
Olá, fresquinho!


A correr pela, rua... Amanhecer.
- Corre Malva, corre. Ainda perdemos o comboio.
A correr, rua abaixo. Acelerar.
- O que achas que estou a fazer, Sílvio?
A ver ao longe o comboio partir. Meio sul, meio ferrugem.
- Merda, zarpou!
Ofegante, mãos nos joelhos e convulsões com sabor a chicote. Antiquado.
Um relógio gigantesco, ofuscado pela sujidade de décadas.
Tlooomm. Tlooomm...
- Sabes Sílvio, em relação àquela conversa...
- Sim, sei. Percebes a lógica?
- Sim, percebo. Quer dizer, tirando uma coisa que não pára de me incomodar.
- O quê?
- Por exemplo, não conheço ninguém que tenha gostado do Titanic nem chorado na Lista de Schindler. E no entanto, lá estão os "Clássicos". Assim como não conheço ninguém que goste do George Bush ou do Paulo Portas. E ninguém parece minimamente aborrecido com isso.
- É. Isso é verdade. Mas...
- Mas?
- Podemos tentar o boato da actriz suicida.
- Resulta?
- Se for na noite da véspera, sim.
- Ok.
Não é negrume nem luz. E esfuma-se em fulgor.

quinta-feira, agosto 05, 2004

Ensaios 234v.b33
Súplicas de carne viva - sangue em freeze-frame

Súplicas de carne viva - sangue em freeze-frame

quarta-feira, julho 28, 2004

Excertos da biografia alternativa de José
Hey now, you're an allstar...


Um sol dourado tinha vindo naquele dia acariciar a neve que coloria de branco aqueles cinzentos armazéns de cereais, do outro lado da rua, frente ao palácio. Lenine, já sem poder falar, gravemente doente, ouve a velha porta ranger. A densa madeira adornada com puxadores de ouro era ainda do tempo dos Czares, do tempo em que o velho Lenine, então jovem, vivia no pânico da clandestinidade. Pela porta entra Estaline com uma bandeja de chá e bolinhos. Tentava disfarçar o ar zangado com um olhar de complacência falso. Sabia que o velho Lenine tinha a carta, aquela que queria publicar para o afastar do cargo de Secretário Geral no próximo congresso. Antes da porta fechar, o velho Lenine ainda conseguiu olhar de soslaio o amigo preocupado Trotsky.

Estaline ignorava o velho Lenine enquanto delineava mais umas partes do seu plano de nacionalização agrícola. No entanto não conseguia de pensar naquela miúda de 15 anos que vira uns dias antes na cozinha do seu amigo Dimitri, calceteiro nobre dos palacetes dos suburbios de Sao Petersburgo. Notando que estava a fugir ao plano e que a sua mente começava a divagar, tentou concentrar-se no partido e nos seus planos de modernização acelerada agrícola. Como que inspirado por uma divina mensagem, vira-se de repente para o moribundo Lenine, prestes a monologar aborrecidamente umas palavras:

- Sabes velho, aquele Trotsky não nos serve. Nem um nome decente soube escolher. Trotsky? Que merda de nome é esse? Não é nome que sugira respeito, é mais nome de padeiro de segunda categoria ou de saltimbanco domador de ursos. Eu tenho um tio carpinteiro que uma vez cortou um carvalho junto ao chão, e as estrias da velha árvore revelaram-lhe uma profecia que até agora tenho escondido de ti. Via-se claramente uma imagens em tons de castanho de Rasputine a ser sodomizado por um trabalhado pénis de madeira, cuidadosamente incorporado numas cuecas de seda da Czarina Alexandra, enquanto um grupo de membros bolcheviques, sentados, faziam desenhos para imortalizar a cena.

Lenine bate fortemente, aterrorizado, com o punho na mesa, derrubando uma garrafa que tilinta aos pedaços pelo chão. Trotsky entra quarto adentro assustado. Estaline chama-lhe "filho da puta" entre dentes e sorri sarcasticamente. Ao levantar-se, bate com a cabeça na cómoda e dá um grito de menina. Trotsky solta uma gargalhada sonora e um guarda e alguns membros do soviete tentam esconder uma risada furtiva. Estaline corre para a casa de banho, corando de vergonha. Com a pressa, derrubou um guarda armado que se desmancha rir antes de bater violentamente no chão.

Do lado de fora da casa de banho Trotsky perguntava-lhe se era preciso chamar a mamã para ajudar o menino a fazer chichi, enquanto os guardas, agora deitados no chão, se rebolavam a rir, em espasmos incontroláveis de gáudio. O velho Lenine foi aqui visto sorrir, numa das suas raras alegrias de final de vida.

terça-feira, julho 13, 2004

À conversa com os senhorios
Uma história de coragem sem cães nem criancinhas de olhos grandes

- Sim?
- Boa tarde. Daqui fala do Monte Olimpo.
- Das máquinas fotográficas?
- Não. Do Monte mesmo.
- Ah, é que tenho uma a arranjar e...
- Ahammm...
- (...) Ok, percebo. Aquele do velhote de barbas, não é?
- Mais respeitinho...
- Então e o que queriam?
- Era para dizer que está em número 235 para apanhar com um raio e devido a problemas técnicos e mudança de turno é capaz de ser adiado para amanhã. Era também para dizer que não faça planos...
- Era? Já não é?
- Update para número 37.
- Humpfff

sexta-feira, julho 09, 2004

Ensaios 324j.83b - 1/180s de realidade
Beleza em suspensão

Beleza em suspensão

A tempestade prodigiosa
[loop-back] Pureza foto-voltaica e a satisfação num espasmo

Arrastava-se por entre extensas fileiras de jazigos, procurando não encontrar. Fitava o ponto intermédio, o ponto da ausência absoluta. Até ao infinito se alongavam aqueles carreiros branco-sujo, ensopados parasitas ácidos, corroendo a pedra e a carne. Do céu chovia deus, um deus negro e novo. Uma repulsa, uma malquerença, um dedo esmagou a mesquinha existência humana. Prostou-se de joelhos olhando o sombrio promontório, onde as sepulturas se uniam ao infinito do firmamento. Árvores mortas, funestas testemunhas silenciosas. Nos seus ramos ressequidos e abrasados apenas sobravam os corvos. De olhar ardente e semblantes de raiva, a cara do deus punidor. Não esperavam mais morte, porque mesmo o mal se sacia e a pústula da humanidade haveria de ressurgir para novamente lhe saciar o desejo sófrego de carne morta...

...e do negro se fez espírito, e a mágoa vindimou a opulência e do esplendor se fez sobriedade. Afinal era novamente vida primordial. A oferenda dos deuses.

terça-feira, julho 06, 2004

CHOQUE...

...Silêncio

sexta-feira, julho 02, 2004

Ditados extintos do Chile
Interactividades

Foi nessa luz que se fez negridão. Foram nessas águas ensanguentadas que foram lavadas as lágrimas. Foi nesse vestido branco que caiu o bolor dos tempos. Foi esse olhar que oxidou. Foi esse olhar que congelou num esgar sofrido.

terça-feira, junho 29, 2004

Pérfidas dádivas orgânicas
Estímulo e Impulso... - Essência do fino trato

Era endiabrada a malvada ninfa, dada a práticas obscenas e negras homilias. Vestia o vermelho pecado e ondulava os movimentos lascivos, desvendando coesa astúcia carnal. Doce devassidão... Navegava já no mar alto da lascívia sob o metrónomo da luxúria quando, sob a minha face, se abatem gotas de suor de vingança, sal de vício...
Não era para mim a oferenda de paixão... Algures no mundo se projectava a intensa fúria, sob um delicado e meloso embrulho de ignorância.

quinta-feira, junho 24, 2004

Uma palavra

Ligeiramenteatordoadosempercebermuitobemporquê.

terça-feira, junho 22, 2004

Rasgadas as pátrias, restam as sombras
Por entre densas cortinas de assombro

Era por trás da pesada porta de metal que ocasionalmente via o críptico checoslovaco. Um olho de vidro e 3 dentes de ouro. Barba abundante e não cuidada. Selvagem, parasita do seu corpulento anfitrião. Pesava muito, mais do que qualquer balança comercial podia quantificar, dizia fluentemente na língua que não era a dele. Ostentava orgulhosamente a gaiola de pássaros exóticos, que ninguém se atrevia a adivinhar o nome. Chamava os ventos pelos nomes e sabia a sua origem e acção. Falava na transversal e era nessas alturas que balbuciava na diagonal, entre dentes de ouro, diapasão da retórica, filtro imperfeito da lógica. Era seu dono e senhor. Das suas palavras a meio, a dobrar, de lado, obscuras, incompreensíveis. Toda a gente anuía, porque decerto era sábias. Contudo arrotava selvaticamente, desculpado pela sua invulgar nacionalidade. Não tenho a certeza que fosse checoslovaco, até porque já nem existe Checoslováquia. Devia ser impressão provocada pelas calças de licra tricolores (na vertical). Provavelmente o olho nem era de vidro e era encorpado, mas não gigante. Nunca prestei atenção ao que dizia, porque doutrina empacotada e estanque nunca foi o meu assunto predileto...

segunda-feira, junho 21, 2004

Ensaios HTY32.c: Mundi - Um copo plano, um mundo líquido

Mundi

1,29 gramas/litro
À temperatura de 0 °C e ao nível do mar

Um abismo. A dor num dedal. O universo numa unha suja do pé. Uma alma perdida, guardada pelo pastor do vizinho. Um rasgo no tecido protector. É como quando trancas o carro por dentro, nunca te passando pela cabeça que quem te quiser apanhar pode facilmente agarrar numa pedra e entrar. tIPO quando trocas o Caps Lock acidentalmente e afinal até fazia sentido. É como quando olhas para um globo e te dá claustrofobia ou quando, de repente, olhas para o calendário e passaram 20 anos. Uma verdadeira sensação de segurança provocada por uma falta sensação de segurança que cria segurança. Enfim, quem disse o que ar não tem peso?

Autobiografias aos pedaços - Bocados de nada, vol. 15
Entrada do novo século - o mesmo de sempre

Depois de entrar no carro, sem uma palavra, sem um gesto, tudo estava terminado. Olhares e electromagnetismo manhoso armado em telepatia tinham passado a mensagem. "E agora?" Pensou... Bem, agora é aguentar 3 ou 4 horas de um silêncio violentíssimo e esperar que tudo acabe com dignidade. Todas as frases poupadas e abandonadas no vazio de mentes hiperactivas provocaram um extâse, um mundo de fantasia "E se...?", criando realidades paralelas, desejando estar lá, já! Nem um único olhar se cruzou. As mãos quase encostadas libertavam suores árticos. Era repugna civilizada, um "Vai-te foder" disfarçado de "Faço de conta que nem aqui estás".

A certa altura dei comigo a encaixar este falhanço emocional na minha lista de falhanços emocionais, prevendo com extrema precisão os acontecimentos futuros, as emoções, as fases, toda a merda sentimental do costume. Ao fim da segunda hora ansiava por viagem em criogénio, mas quando cheguei ao destino facilmente a trocaria por uma daquelas frescas que saiam do bar da praça... Era afinal, outra vez, nada...

- Como dividimos CDs? - perguntou
- Fica com eles que fiz cópias - respondi impaciente

Mix Monocórdico

- Ontem li um poema em que alguém dizia que não se pode destruir aquilo que não se criou.
- Ai sim?
- Sim...
- ...
- ...
- Qual o contexto? Bíblico ou artesanato?
- Não sei, mas o poeta era famoso.
- Sabes o nome?
- Não.
- Deve ser arte ou filosofia alemã. Passa-me o ketchup.

quinta-feira, junho 17, 2004

Ensaio SH23.5d - "Atlantis XXI"
Uma mão cheia de séculos mais tarde

Atlantis XXI

Ensaio SF56.d3 - "Uma fuga ao infinito"
Easy left

Uma fuga ao infinito

quinta-feira, junho 03, 2004

Submersos em formol numa garrafa translúcida sem rótulo
A Hiper-Realidade ao pintelho

Ia ela linda pela rua, confirmando a firmeza do seu rabo nas montras semi-reflectoras da baixa. Alguma luz passava para dentro das lojas, outra era reflectida. A ordem com que os fotões eram reflectidos para as suas retinas era perfeitamente aleatória. Chamam-lhe a teoria do caos.

Foi um grupo de fotões escolhidos pelo acaso que penetrou numa montra gigante de uma loja de animais. Ele estava dentro e reparou nessa imensa quantidade de luz que veio de encontro a si. Saiu a correr, passos largos que associados a todas as velocidades relativas, tendo em conta o modelo universal tal como o conhecemos, só não se desintegrou porque a gravidade o puxou ao seu referencial rotativo.

Aproximou-se e falou-lhe em códigos de outrora. Falou-lhe trémulo. Já alguns ciclos de irrigação sanguínea tinham por ele passado quando ficou acordado um encontro. Num café ali ao lado. Imediatamente. Longa foi a conversa. Acto mecânico. Vibrações de cordas vocais, articulações e músculos que se coordenavam, tentando passar a mensagem. A delicadeza e sensibilidade da perfeição. A imagem perfeita atirada a uma alma ferida em busca de protecção.

A mensagem passou.

Dois anos, três meses e vinte e oito dias mais tarde.

Ela chora na cama, sufocada pelos espasmos e pelo aperto do seu coração. Numa mão segura o frasco enquanto pondera o que fazer. Na memória a imagem dele, a ir de encontro a mais uma alma ferida em busca de protecção. De longe ela viu novamente o acto mecânico. Na terceira pessoa. Ela viu o café e o encontro. Viu o olhar submisso da outra alma e a mecânica manipuladora dele. Predador. Actor profissional. Cabrão. Pensou ela... Na cama ponderava o uso do frasco. Na outra mão o anel de casamento, ainda a brilhar da frescura de uma semana de uso.

quarta-feira, junho 02, 2004

De alma dormente
O Alpha e o Omega (e outras marcas de relógios)

- Sabes qual a sensação de te odiares a ti próprio?
- Sim, sei! -
respondeu ele sorridente.

Nunca ele poderia responder que não. O facto de alguém se sentir satisfeito consigo próprio é sinónimo de sono profundo. É sinal de fim de linha. Significaria que agora tinha encontrado a plenitude, essa utopia romancesca. Significaria que tinha encontrado a equilibrio perfeito de café/leite/chocolate para um capuccino divinal, um automóvel que realmente prolongava o seu pénis, digitália perfeita para o som 6.1 e visão cristalina nos seus filmes merdosos, um penteado para o resto da vida, o perfume dos deuses, um método perfeito de organizar a biblio(disco/dvd)-teca, a marca de roupa que transborda maturidade a rodos ou o grupo de convicência social onde podia dar largas a toda a sua superficialidade.

Se respondesse sim, ignoraria por completo que a perfeição e plenitude são na realidade uma amálgama de pequenos nadas, que removido todo o ar, não preenche sequer o espaço entre dois protões do mesmo núcleo.

terça-feira, maio 25, 2004

Estímulo sensorial acrescido
Um sonho "urbano pós-moderno", labaredas no cortex e o típico Shakespeare sob a influencia do seu habitual clister

Acabadinho de sair do seu emprego corporativo, engomadinho como se fossem 9 da manhã, dirige-se ao seu carro. Imaculado. Como se tivesse sido acabado de encerar. Ausência total de anomalias. Uma ou outra colega suspira ao passar por ele. Ele, a transposição directa do homem-hugo-boss, a conversão perfeita do universo calvin kleiniano, o senhor gillete. Minutos depois passa pela escola para levar o seu doce casalinho para casa. As crianças Tide. Lourinhas como o sol da manhã e os olhos do mais puro mar, as caraíbas não poluídas do séc. XVI. À chegada ao seu condomínio fechado, com...
[Fiz questão de fechar os olhos enquanto sentia a faca a entrar-te no intestinos. Sei que gritas e sei que te dói. Faço disso questão. Tomei precauções. O veneno da lâmina tem que ser bem espalhado enquanto a faca ferrugenta roda 90 graus. Envenena-te e contagia o teu ventre, assim como esterilizaste o meu coração, agora terra morta. Liberto-vos da dor. Mesmo tu, pequenito, nem sabes a sorte que tens de nunca conheceres como é o mundo cá fora. Sei que a tua mãe te guardará com os anjos.]
...tudo privativo, as portas do céu abrem-se para dar passagem à carruagem dos deuses, azul marinho, klub BMW prestige... Na entrada de relva-paraíso, correm as crianças em direcção ao quente da mãe, que de joelhos as ampara num protector anel de amor imaculado. De novo de pé, beija o marido-hollywood. O cheiro a lavanda invada a área, naquilo a que se pode chamar casa. Uma dádiva de amor, angelical sintonia, uma refeição de azul e lilás. Multicor centro de mesa. Natural, de hoje. Claridade e plasma TV. Juntos na simbiose da perfeição. Diante da TV que debita gráficos Blommberg e sorrisos...
[Sempre adorei este cheiro do sangue que escorre deliciosamente em direcção aos meu lábios. Jazes aí, cara de amor e pesar, fumegas do baixo ventre. Como esperei por esta temperatura baixa para ver o teu ventre espalhado na neve. Como se infiltram as tuas entranhas e teu sangue na terra. Dissolves a neve como fizeste com os sentimentos. Levo estas recordações de ti, carne da tua carne. Podia ter sido bom entre nós, sabes? Porque me obrigaste a fazer isto? Logo tu...]
...Sensodine plus. Ao final da noite, fecham simultâneamente os seus livros de prémios nobel, sorriem um para o outro e repetem em uníssono "Amo-te".
[Amo-te. Perdoa-me... ]

segunda-feira, maio 24, 2004

Ensaios 32.256b: Surdez

Luz

segunda-feira, maio 17, 2004

Como cair em desgraça em 4 caracteres
Manual de sobrevivência

Alguma vez vos contei a história do miúdo que jogava pinball compulsivamente? Era o miúdo mais respeitado do bairro, com todas as colunas de records preenchidas por ele. Kafka, era o seu nome de combate. As miúdas adoravam-no, os colegas de sala de jogos idolatravam-no. Kafka, o rei. Kafka não era Kafka, era Jorge. Não era grande coisa nos estudos, não era especialmente bonito. Era o rei do Pinball digital. Oferecia créditos extra a meninos desfavorecidos que não tinham moedas para jogar. Uma vez escreveu o nome de uma criança hospitalizada no 2º lugar da tabela e enviou uma foto para a enfermaria. Essa criança colou a foto por cima das flores, bolachas e iogurtes de aromas. A honra das honras. Kafka lembrara-se de si, um gesto que lhe aliviou o sofrimento.

Um dia, de um bairro vizinho chega Machel. Outro recordista imbatível. Num combate que durou uma tarde, a sala de jogos tinha preço de admissão. 2 euros que davam direito a um crédito. Machel bateu o record e entrou para o número 1 da lista. Kafka suava. A multidão estava suspensa. Com o batimento cardíaco em uníssono, os amigos de Kafka rezavam às suas divindades. Desde os deuses de Final Fantasy aos mestres de Tekken, todas as divindades eram chamadas a agir. Kafka porta-se bem e num golpe de sorte, consegue voltar ao número 1 da lista com uma vantagem de 50 pontos. Uma ninharia entre milhões, mas o suficiente para lhe devolver a coroa. A multidão entra em delírio. Machel abandona a sala cabisbaixo.

Mas a desgraça final acabaria por se abater sobre o jovem Kafka. Ao escrever, emocionado, o seu nome, o jovem Jorge engana-se nos botões e com a rapidez esquece-se do "f". Ao olhar orgulhoso para o monitor vê no topo da tabela "Kaka", o que causa um escárnio generalizado na sala. Kafka era agora Kaka e não pode sair de casa durante meses.

Comprou uma Playstation 2 e dedicou-se um pouco mais ao estudo.