Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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terça-feira, outubro 21, 2003



Cassete 9, Dia 4. Paciente BN9852
"(...)
Na altura nem pensei nisso. Na altura fiquei com uma percepção errada do acontecimento. Sei isso agora... Sei isso porque me lembro. Claramente. Como se tivesse sido hoje de manhã. Eu estava em casa a ler o jornal na cozinha. Sempre gostei de ler lá de noite, pois a luz é branca e forte. Ela vinha ter comigo a toda a hora. Sempre a mesma questão. Não me lembro da questão, mas lembro-me da sensação de impaciência que me provocou. Passado algum tempo atingi mesmo o ponto de desespero. Eu não a aguentava. Já não suportava a voz. Entrava em mim como uma doença, corroía. As ondas sonoras ecoavam no meu interior, fazendo tremer toda a minha estrutura. A certa altura começou a doer. De início era forte e localizado e depois alastrou.
[fast-forward]
Quando ela foi dormir peguei na arma que estava na mesa de cabeceira. [click][reverse]...na arma que estava na mesa de cabeceira. Peguei na arma e coloquei junto à cabeça dela. Pressionei ligeiramente e senti que escorregava no couro cabeludo. Estava a suar. Como sempre suava. Malcheirosa. Premi o gatilho até meio e senti que mais um milímetro podia acabar com tudo. Beijei-a na orelha e sussurrei-lhe o nome. Ela acordou. Disparei e voltei para a cozinha ler o jornal. Ainda me demorei uma ou duas horas até voltar à cama. Dormi a seu lado suavemente. Ela ressonava. Eu sei que ressonava. Antes do amanhecer sou acordado pela polícia que me batia na porta. Fui levado para a esquadra e ainda pude ver o nascer do sol por detrás do parque da cidade. Sempre neguei tudo, porque posso afirmar conscientemente que a ouvi ressonar durante a noite.