Um silêncio eterno
Ao fundo da escada, mesmo junto ao elevador que não funciona, vinha ela. Ele não a viu, mas podia ouvir ecoar pelas escadas o mórbido barulho do sistema de suspenção da muleta. Gasta. A muleta, não ela. Bem, ela também. Gasta. Aquele velho edifício (3 andares) com frias escadas de pedra polida pelas décadas de sapatos tinha uma acústica única. As lâmpadas há muito que não eram trocadas e, as poucas que ainda existiam, teimavam em pintar de amarelo tudo o que iluminavam. E não é aquele amarelo alegre. Não, nada disso. Amarelo fúnebre. Tão funebre como todo o edifício. Quem vinha ali pela primeira vez podia sentir o toque das sombras. Como elas lhe lambiam os corpos em danças invisíveis. Mortuárias.
O eco da muleta aproximava-se. Agora ele podia também ouvir os tacões dos sapatos ortopédicos. A sua vontade era esfaquea-la assim que ela entrasse por aquela porta. Adoraria sentir o sangue quente a escorrer-lhe para os braços. Nunca iria lavar aquela roupa manchada do sangue do seu extâse. Sabia exactamente como ela iria reagir a isso. Sabia qual seria a sua expressão facial, a cara surpresa, como seriam os seus gritos... Sabia tudo, pois essa imagem já corria pelos seus pensamentos há muito. Era informação que estava aglomerada já ao seu instinto de sobrevivência. Como reagir num tremor de terra, como fazer em caso de incêndio, como a matar... Sorriu!
A campaínha toca. "Ela tem as chaves, porque é que faz sempre isto". Respirou fundo. Antes de ir à porta, passou pela janela e olhou a rua que ali em baixo descansava. Velha e suja. A rua, não ela. Bem, ela talvez um pouco. Respirou novamente fundo, tão fundo quanto podia. Antes de abrir a porta fecha os olhos, constrói o sorriso. Abre a porta. Beija-a nos lábios. Ela entra. Ficam em silêncio. Horas de silêncio. O silêncio da cumplicidade. Décadas de cumplicidade. Décadas de silêncio.
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