Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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domingo, setembro 14, 2003

A hora zero

Latitude:40N12, Longitude:8W25
Primeira classe. Era o que lhe tinha aconselhado o seu secretário à saída do escritório. Ar condicionado, canal de TV dedicado apenas a comboios e alguns jornais do dia. A viagem era curta. "300 Km fazem-se mais rápido do que o tempo do check-in e a espera das malas", disseram. Aproveitara para desfolhar o jornal de cima, de uma pilha enorme de publicações. Azar o seu. Política, o assunto que menos lhe interessava nesse momento. Como toda a mãe de crianças jovens, detestava aquela crise de que falava agora constantemente na comunicação social. Pousou o jornal e olhou pela janela. Adorava pontes altas, principalmente esta, onde podia ver o rio a bailar por entre as montanhas. O vale da sua infância. De repente, ao longe, um clarão de proporções gigantescas ilumina o céu de final de tarde. Quase a cegava. Vinha de longe e tocava o céu. Aos poucos apercebeu-se que estava a aumentar, como uma esfera de luz que está a libertar-se do planeta. O som? Não o ouve. Aproxima-se de si como uma imagem que atravessa um vidro tosco, imperfeito. À sua frente uma fina camada de fogo azulado e transparente. Uma grande quantidade de pessoas já havia reparado naquela enorme massa de combustão na sua direcção. Entre o pânico e os gritos de horror pensou na sua filha. Aquela que não mais iria ver. Suspirou, fechou os olhos e o seu queixo tremeu. Disse em voz alta e trémula: "amo-te, princesa". Não teve tempo de chorar. Sentiu na ultima fracção de segundo a onda de choque. O comboio não tinha viajado mais de dois metros acima dos carris e já estava desintegrado, transformado na matéria primordial do universo. Uma amalgama de nada.