Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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segunda-feira, outubro 27, 2003

O Padrinho

Arredores de uma cidade em tempos grande. Finais de 2003. Portugal. Jantar de família completa (aqueles com mousse de chocolate Alsa).

Depois de um farto jantar, toda a família ri e conta histórias. Sempre as mesmas. Toda a gente ri, como sempre. Felicidade de família completa. Quem tem, sabe do que estou a falar. Lá fora está frio e uma chuva teimosa teima em arreliar os membros da família que se deslocam aos veículos para trazer prendas. As piadas light que fazem rir sem ser preciso ouvir. Crianças. Há sempre crianças.

A determinada altura alguém olha pela janela e vê o que parece ser um reflexo de alguém a fumar. Olha para dentro e depois volta a olhar para a janela. Não é reflexo, pois alguém está mesmo do lado de fora a fumar. Não entra. Alguém reconhece a pessoa e manda-a entrar. A pessoa não quer entrar. Novamente se pede que entre. Desta vez mais pessoas. Toda a gente quer acolher aquele semi-estranho no quente lar e partilhar um pouco de comida e calor com ele. O estranho entra e fica à porta. Fica a olhar a família. Vestido de negro numa divisão escura. Olha em silêncio. Algo está mal... A única coisa que brilha são os seus olhos. E não é alegria, são lágrimas tremidas. Daquelas que demoram a cair por serem gordas e grandes. Aquelas que caem em camara lenta.

O estranho tem nome. Chama-se Nikolai. Um emigrante de leste que é empregado de um dos familiares. Aquele que empunha uma garrafa de Johnny Walker de 12 anos. Especial para ocasiões. Nikolai entra e senta-se. Não consegue falar e o seu maxilar treme. As gordas lágrimas acumuladas na pequena membrana óptica tremem em conjunto com os seus lábios e maxilar. Tenta conter soluços. Pede num português imperfeito e envergonhado "Posso falar consigo"? O homem do Johnny Walker diz "Sim. Fala homem! Não queres comer e beber nada? Uma cerveja?". Nikolai gesticula um "não" em russo.

Numa sala separada Nikolai conta ao seu patrão o que se passou. Enviou para casa 2000 euros para um "amigo" trazer a sua esposa para Portugal. A sua esposa é então "contrabandeada" para Portugal. Algures da Europa um telefonema foi feito para Nikolai. Se ele quiser voltar a ver a esposa terá que pagar mais 15000 euros. Senão ela ficará perdida na grande Europa, alimentada diariamente a heroína, presa pelo vício. Uma máquina de carne a produzir dinheiro para um abutre. Nikolai não sabe como explicar isso aos filhos, a cuidado de uma avó mentalmente presa na URSS. Nikolai não pede dinheiro, apenas pede para ser dispensado por uns dias para viajar Europa dentro de autocarro, numa viagem cega que o vai levar a nenhures.