Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

quinta-feira, outubro 23, 2003

A variável

O estudo
Um dia um homem decidiu parar. Saltou fora do fluxo do planeta e ficou a olhar. A contemplar. Ali parado a ver, analisar e tirar apontamentos de uma perspectiva exterior. Percorreu todos os pontos do planeta com o seu gasto bloco de notas e meio lápis. Ao fim de algum tempo constatou que a sua tarefa era de resolução impossível. A vastidão humana nas suas infinitas combinações não permitia o resultado estatístico a que se tinha proposto. Recomeçou. Desta vez estava decidido a analisar as diferenças interiores das pessoas. Tentando arranjar um algoritmo (equação/teorema) que permitisse definir a amplitude que existe entre o pensamento/sensação/emoção e a acção.

Ao longo do tempo foi reunindo notas, apontamentos e resultados temporários. Elaborando pequenos gráficos que depois expandiam para um infinidade de opções. Grafos e árvores de rabiscos. Cada vez ia ficando mais deprimido. A natureza humana decepcionava-o quando confrontada com as suas expectativas. Tentava combater o desprezo que por vezes lhe percorria o pensamento. Tentava que a sua razão e coerência flutuassem naturalmente sem intervenções artificiais.

Ao fim de anos de pesquisa começou a analisar os registos. Durante outros tantos anos foi refinando a equação. Havia uma variável que estragava sempre o resultado. Uma variável que tornava tudo inconclusivo. O factor delta-nulo, como lhe chamava. Delta nulo pela incapacidade que provocava na equação. Uma incapacidade de arranjar um valor de amplitude coerente. Sentou-se a pensar no problema. Dias depois chegou a uma conclusão. Uma terrível conclusão. Uma conclusão que iria inviabilizar todo o projecto. Ele era o factor delta-nulo. Devido à incapacidade de atingir um grau de abstracção suficiente para ser imparcial, todo os seus estudos foram afectados.

O resultado
Tentou voltar ao mundo. Dia após dia ia falhando a sincronização com o natural fluxo da vida. Quando pensava que estava já perfeitamente reabilitado, algo o relembrava que afinal estava completamente fora da realidade. Durante mais alguns anos falhou a reinserção, ficando cada vez mais desesperado. Sentia uma membrana invisível que o separava da realidade, fazendo dele um pária. Com o decorrer do tempo foi-se preocupando cada vez menos com isso, substituindo o espaço em branco por ódio, desprezo e ira. Até que um dia chegou ao ponto inverso. Como se tivesse virado uma ampulheta que no meio tem um conversor. Quando a areia que continha a força de vontade de reabilitação passou para a zona de ira, tudo parou. Ficou em branco e parou. Zero absoluto...

A dois dias do fim...
...passeava-se pelas ruas da cidade explicando os seus estudos aos transeuntes que o ignoravam. Por vezes era mal tratado. Outras vezes repudiado. Havia quem tivesse compaixão. A polícia prendia-o recorrentemente. Dormia na rua e vivia da caridade. Havia mesmo quem gostasse dele, mas a membrana invisível, tinha também um efeito ofuscante. Acinzentava mesmo o colorido. No entanto, interiormente, sabia que o problema não era dele, mas do resto do planeta. E isso fazia-o sorrir durante as noites, quando partilhava uns restos de comida e um cobertor velho com outros. Os loucos, como lhe chamava.