Eu, Tamagoshi!
2003: Aqui estou eu, sentado. No meu sofá monolugar cinzento olho os cortinados. Cinzentos. O pó que habita os meus móveis cinzentos é quase negro. Um negro pálido. A sala pequena é um indutor de claustrofobia, clinicamente testado. Lá fora o céu cinzento teima em me alegrar. Só a mim. As multidões passam rapidamente deixando negros traços desfocados. Não consigo ajustar o obturador dos meus olhos a este rápida realidade cinzenta e a minha retina insiste em me apresentar apenas formas oblongas acinzentadas.
A minha TV a preto e branco mostra-me uma figura desfocada. Rápida a gesticular. Hipnótica. Uma conferência de imprensa. Desde que o imposto sobre a realidade foi criado, já nada brilha, já nada reluz, as cores morreram. Finalmente, um ano depois uma novidade. O azul. Uma nova medida apresentada por um senhor cinzento sem sobrancelhas que aponta para uma projecção na parede cinzenta. Apresenta o azul e diz que brevemente vamos retomar o verde e o vermelho. Se as coisas correrem bem, o senhor diz-me (só a mim, que eu sei!) que a retoma está para breve. Mesmo que para isso tenhamos uma realidade sem som definido, mono, 8 bits. Até passar a recessão.
Na rua um turbilhão de carros, enfeitados com bandeiras cinzentas e azuis, apita ruidosamente com um som fanhoso, como que passado por um telefone nos anos 70. A alegria monocolorida (+ azul) deixa a populaça em êxtase. Vendem-se cachecóis azuis, chapéus azuis, camisolas azuis, enfim, uma nova semi-realidade.
Junta-se uma força de agentes da autoridade. Controlo. Os olhos de falcão observam cada passo do povo. Internamente choram, estes agentes. Apressado e assustado, pego no meu cubo de Rubik que comprei no mercado negro e atiro-o para o lixo. Pego no isqueiro e queimo-o furiosamente.
Em breve será retornado tudo aquilo a que temos direito e que nos foi cortado artificialmente. Em breve vou poder ver a relva e os frutos coloridos. Em breve vou poder distinguir os diferentes sons de crianças e saber de que direcção aparecem. Daqui a dois anos, talvez!
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