Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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segunda-feira, agosto 11, 2003

Monólogos do surdo

Estava um erudito na praça a recitar grandes pérolas de sabedoria. Citava escritores gregos, filósofos alemães, pós-modernos americanos. Ia desde os provérbios celtas até aos príncipios morais Incas. Escritores sul americanos e cubanos passavam também pelo seu extenso rol de erudição. Distribuia pérolas ao povo, como gostava de lhes chamar. Eclético, de pose dura e altiva, gostava muito de falar e pouco de ouvir. Lá ia ele, desfolhando citações atrás de citações. Chamava a atenção para belezas ocultas, mensagens encapsuladas e para a moral que podia advir daquelas pérolas.
Um dia, sentado numa esplanada diante de uma vasta assembleia de ouvintes, desfilava um extensa lista de citações de um escritor idealista dos anos 60. Falava que se as coisas fossem perfeitas, não o seriam por muito tempo. Construia raciocínios que depois associava a outros prévios e o povo lá ia ouvindo entre uma ou outra cerveja. A certa altura aparece um pastor. Senta-se na plateia e ouve com atenção à espera de uma altura para intervir. Uma ou outra vez tentou falar, mas o sábio falador não lhe dava oportunidades. O erudita pergunta a certa altura à plateia qual a moral da história que acabara de contar. O pastor, humilde e simples, nas suas roupas gastas e velhas coloca o braço no ar e tenta mais uma vez intervir. O sábio diz "pensais vós que sabeis, mas a verdade é outra". E continua a falar cegamente sozinho. O pastor tenta de novo falar e o pregador não lhe dá essa possibilidade.
A certa altura, farto de esperar e irritado com a situação, o pastor levanta-se num só movimento, sobe para cima de uma mesa. O pregador, num gesto abrupto, manda-o sentar rapidamente. O pastor não obedece e em plenos pulmões, para se conseguir fazer ouvir, diz: "Só queria avisá-lo que a sua casa está a arder!"