Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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quarta-feira, agosto 13, 2003

O pranto do acordenista taciturno

Nascido prematuramente, foi desde sempre super-protegido pela mãe. Nunca deixou de usar chupeta e apenas a vergonha das risadas dos colegas de escola primária criou em si uma necessidade de a largar. Aos 7 anos, a professora primária descobriu que urinava na cama todos os dias, facto que lhe foi negado pela mãe, que numa atitude desesperada procurou secretamente um pedo-psicólogo para a criança. Começou a falar apenas aos 4 anos e com fluência apenas uns anos depois. Aos 8 anos foi obrigado pelos pais a tocar acordeão, para poder brilhar no grupo folclórico da aldeia. Falhou. Aprendeu orgão e substituiu a Dona Lurdes nas missas dominicais. Protegido pelo padre da paróquia, cedo foi influenciado a seguir a via religiosa, num seminário. O único amigo que tinha tirou-lhe essa ideia. Aos 12 anos, uma sua colega fez uma aposta com os colegas em como o conseguiria envergonhar publicamente. Com sucesso. Apareceu todo nú no àtrio da escola, tendo-se urinado publicamente numa crise de choro. Na altura os "matulões" não deixaram que fugisse para aumentar o vexame. Acabou o liceu com dificuldades, depois de ter trocado 3 vezes de estabelecimento.

Sem nunca ter conhecido os prazeres da carne, decidiu tentar a sorte numa faculdade de Direito. Morava sozinho num quarto escuro, com uma janela que inundava a sua solidão. Chorava todos os dias. Acabou o curso de direito com estranha facilidade. Um amigo do falecido pai arranja-lhe um estágio numa firma familiar de advocacia. Sempre sem amigos, comprou um apartamento igualmente escuro num cinzento bloco de apartamentos. Aos 49 anos ainda chora... Apesar de ser agora membro de destaque de uma organização governamental! A sua mãe já não pode estar do outro lado do telefone e o único amigo que teve revelou publicamente a homossexualidade ao ter atingido notoriedade social. Os seus assessores sugeriram esse afastamento.

Em casa, sozinho ainda toca acordeão. Gosta de sons lugubres. Numa quinta isolada no Alentejo, gosta de tocar acordeão de noite, todo nú, sentado numa velha motorizada do anterior dono da quinta. De alguma maneira que não consegue compreender, isto excita-o sexualmente. Prefere quando o assento de couro está molhado com o orvalho da noite.

Guarda religiosamente uma pistola carregada que comprou aos 19 anos, destinada ao seu suicídio. Por 4 vezes já a agarrou, ponderando o uso.

Não fuma, não bebe, queimou uma auto-biografia que escreveu e não se lembra de longos periodos de tempo da sua vida, incluindo três dos quatro anos de faculdade. Não suporta usar calções, porque rapa frequentemente as pernas em ataques de pânico provocados pela pilosidade excessiva. Na barriga tem cicatrizes com as iniciais da rapariga que o humilhou aos 12 anos, feita com uma lâmina de barbear, aos 37 anos.