Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

segunda-feira, setembro 08, 2003

A Cúpula
O que fazem os nossos alimentos à porta fechada

Diz manteiga para o pudim:
- A identidade leitosa do universo verte pérolas de traição.
O pudim, indignado e algo rancoro, age violentamente, tentando atingir o ámago do seu sofrimente. Refusta com a ira falada:
- Talvez nunca possas avaliar o metafísico, mas nadando nas ondas da precaridade comum de lógica (i)real nunca poderás almejar a algo concreto.
Molhando a sua alma lânguida e fria, os cereais tentam impor a sua debilitada ordem. Desde o início do consumo que se perderam 70% e a sua capacidade de raciocínio estava letalmente abalada. Porém, encostando os braços cansados à parede, puxa um último volume de ar depois de fumar o seu cigarro de milho diz:
- Todos os luteranos idealistas podem facilmente encontrar a utopia no final anunciado. As escrituras e imagens geradas pelas nossas formas não podem de maneira nenhuma definir a linha do destino.
- Mentira!

Contesta um pobre grão de milho ressequido que se apoia no canto escuro na fase final e moribunda da doença mais temida pelos consumidos. Continua:
- As datas falam de maneira directa e os escritos dos antigos das embalagens de plástico penderam toda a lógica para o metafísico, perdendo a capacidade da visão a curta distância. Deixaram escapar por entre as brisas de loucura o obvio.
- O óbvio racional? Outra vez não!... As escrituras iluminam apenas a infindável vontade de fluir para o grande eterno.

Mais um vez o pudim se havia exaltado...
- Vamos parar! -, grita o queijo mais recente.
- É verdade...
Todos os queijos são possuidores do poder dos consumidos. A realeza mais antiga de sempre. Ultimamente apenas vinham para aqui os mais secos e agrestes. Os suaves e húmidos apenas constam das escrituras dos antigos dos Pacotes de Plástico. Fazem parte de uma crença enraizada que divide os Metafísicos e da Lógica Real. Os húmidos e frescos eram uma casta de consumíveis gigantes que tinham uma duração de vida muito curto. O seu consumo era rápido e a doença mais temida pelos consumidos. Algumas lendas falam mesmo em lutas que travaram pela independencia e final da crueldade da cúpula.

De repente, um clarão amarelado e quente irrompe pelo topo da cúpula e logo se faz sentir um aterrador silêncio. Entre choros contidos e lamúrias geladas, todos os consumidos se agarram a si próprios criando a aparencia seca e porosa que provoca a paragem tempors-tádica.
Um pequeno grão de milho, fresco e húmido, tenta rebelar-se. Levanta-se, prosta-se por cima do seu pequeno e circular habitáculo. Levanta-se com a ira que quem quer o mundo num dedal e grita:
-Morde aqui, cabrão! Deixem-nos em paz. Apenas queremos a serenidade!
Imediatamente é esmagado com a fúria de mil depressões. Morre feliz e grita iberdade verde para os consumidos. As suas feições vitoriosas são desfeitas num breve momento apenas medido em tempo de alma.
Grandes máquinas perfumadas vasculham toda a cúpula, criando devastação por onde passa. Alguns consumíveis partem sob a força do seu próprio medo. A urustose assíncrona invade os seus sistemas e alguns cedem às temiveis doenças.
No final, algumas mães choram os filhos partidos e os pais, irados, gritam roucamente pela justiça na cúpula.

Algures num canto esquecido, o pequeno pedaço de milho jaz, esmagado e disforme. Jaz seco e afarinhado. Jaz com o horror estampado. Jaz pobre. Jaz vazio. Inerte, como o resto da cúpula, deixa-se fluir para dentro da mãe líquida que o acolhe triste, pensando no destino que havia perdido.
Por entre as paredes da cúpula, a dor líquida desce as paredes e aloja-se por entre as raspas da angústia. O mundo morre. Toda a existência perece déspota, como se conhecedora do eterno segredo que desde sempre se recusara a expor.