Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

terça-feira, abril 27, 2004

Mente multidimensional

Era sobre aquele paredão de rochas matematicamente posicionadas que um velho pescador se deslocava diariamente para meditar um pouco. Lançava a sua cana de pesca e ali ficava a pensar na vida passada. Sorria sozinho a recordar bons tempos com deleite. Ocasionalmente largava uma lágrima quando as recordações assim mandavam. Revivia ali todos os momentos chave da sua vida, além daquelas situações insignificantes que ficam coladas no cérebro, talvez fruto de alguma anomalia do processo de arquivo. Era cinema 3D para quem tem o poder.

Um dia, a meio de uma recordação de uma qualquer banalidade conjugal percebeu que a pessoa que aparecia recursivamente nas suas memórias matrimoniais não era a sua esposa, era uma vizinha que observava ocasionalmente com uns binóculos. Aproveitou para verificar também alguns detalhes da casa onde morava e reparou que aquilo era o escritório de advogados onde trabalhara 27 anos como auxiliar de escriturário. Nada daquilo estava correcto, eram memórias artificiais.

Passados 30 minutos esquecia-se novamente de tudo e recordava as mesmas coisas com igual emoção, até ao dia seguinte, por volta das 16:36, em que voltaria a ter a percepção que as memórias eram artificiais. E assim passava os seus dias, a pensar que em tempos teria sido um grande pescador, quando na realidade tinha sido caçador. Julgava que os maus resultados da pesca se deviam à poluição nuclear de um cataclismo que nunca existiu, mas que se recordava vividamente nas suas memórias postiças.