Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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sexta-feira, agosto 20, 2004

O punho de Deus
A sombra de uma dor latente

O comboio passava por um bairro degradado de crianças encardidas sentadas em sofás a apodrecer, virados para a linha-férrea. O chão estava pejado de lixo, reciclagens de reciclagens de reciclagens, usados até à quase desintegração natural. Eram crianças de olhar vivo, brilhante, desiludidas com a vida. Ocasionalmente, por entre o sujo da cara surgiam pequenos regatos de límpida pele, sulcados à força de lágrimas recentes.

Ao meu lado o velho cigano continuava a sua odisseia de feitos hercúleos, palrando incessantemente como se não houvesse amanhã. Falava-me de uma ilha grega, onde morara nos anos 60. Um verão em que a natureza castigou o povo, um verão de vingança atroz. As tréguas homem/mar haviam sido corrompidas, quando um grupo de embriagados e jovens pescadores voltou a casa com peixe sagrado. Na ira do verão o céu escureceu e uma densidade dramática foi transferida por telepatia para o consciente colectivo daquela velha comunidade assustada. Alguns falavam de profecias, interrompidos abruptamente por uma ocasional chapada na cara. Sim, porque era povo temente, mas não eram estúpidos.... As mulheres rezavam, as crianças choravam e os homens, do promontório, olhavam o mar, pediam perdão ao seu estilo macho de peito ao léu. De repente, do nada, o mar revolta-se. Uma imensa onda forma-se no horizonte, o punho do Deus irado. Impotentes, quedaram-se a olhar, enquanto galopava na sua direcção a velocidades vertiginosas. Alguns repararam que vinha polvilhada de pontos escuros, semi lúcidos, impossíveis de distinguir, mesmo por debaixo do azul transparente daquela tépida água mediterrânica. Mas, para alívio da população, a onda pára de repente, em plena formação de 15 metros de altura. As respirações de alegria são curtas, porque de repente os pontos escuros começam a tomar forma e a emergir de dentro das águas, propulsionadas pela inércia do movimento das águas. Milhares de peixes espada são disparados, como que por canhões, em direcção à costa. O povo grita, foge, procura abrigo. Espadartes imensos voam como uma nuvem de flechas de um exército chinês de esplendor Ming.

Dezenas de casas destruídas. Dezenas de pescadores empalados por espadartes. Foi um dos muitos fenómenos não documentados daquela cheia vida do velho cigano.