Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

sábado, setembro 20, 2003

Retro-mundo cruel

8:31, Quinta-feira. 9ºC
Depois de ter deixado a miúda na escola, correu apressadamente para a pastelaria em frente. Pediu o segundo café do dia enquanto fumava o sétimo cigarro em duas horas. Folheava violentamente o jornal enquanto deixava arrefecer o café. Chegou ao fim e parou. Olhou para o tecto e suspirou. Bebeu de forma nervosa o café, sem reparar numa pequena cinza que lhe caíra na violência do desfolhar. Voltou início do jornal, fazendo o percurso inverso. Respirava forte. Toca o telemóvel e dá um salto de susto. Solta um gritinho nervoso, quase imperceptível. Na mesa ao lado dois miúdos gazeteiros viraram-se tão rápido que nem tiveram tempo de limpar o bigode de cerveja. Cerrou os olhos...

9:34, Quarta-feira. 12ºC
- Então afinal onde estás? De vez em quando deixo de te ouvir.
- Não sei... Isto é aqui algures numa estradita perto de Celorico da Beira. Na estrada que vai dar a Rapa.
- Não conheço. É giro?
- Nem por isso. Tem uns declives assustadores. Olha, acerca da conversa de ontem...
- [silêncio]
- Agora a frio, continuas a pensar o mesmo de ontem? Isto para mim funciona de duas maneiras: sim ou não!
- Eu sei, mas não consigo...
- Olha, eu só queria que soubesses que... [barulho ensurdecedor]
- Luis? Luis...? Estás a ouvir-me?
- [barulho de motor e gritos]
- Luis?... O que se passa?
- [gritos ouvindo-se de longe que quase se confundem com o ruído de uma fraca captação de rede]
- Luis? Responde-me [choro e pânico]
- ajuda-me... estou preso... por favor... ajud...

O chamada cai. Ela, em pânico e com medo, fica imóvel. Estática com esta sensação inédita. Em choque. Paralisada. Nada faz. Decide voltar para casa e conviver com as lágrimas.

16:47, Terça-feira, 17ºC

- Afinal o que decidiste?
- Não posso Luis, o meu marido ama-me e tenho uma filha ainda criança, lembras-te? Não tenho coragem.
- Não podemos continuar assim...
- Pois eu sei. Mas eu prefiro continuar assim. A miúda não iria aguentar a separação dos pais.
- Olha, amanhã vou à Guarda, a casa de um amigo. Quando voltar quero tudo ou nada, percebes?
- Não fales assim... Não... Por favor, compreende-me.
- Compreende-me tu.