Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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quinta-feira, março 11, 2004

30 e tal rotações por minuto

O silêncio ensurdecedor. O silêncio abate-se sobre ele como se a atmosfera tivesse aumentado 100 vezes de pressão num microsegundo. O disco tinha chegado ao fim. Um gira discos velho que não recolhia automaticamente a agulha. O maxi single "True Faith" dos New Order rodava entre as 31 e as 36 rotações, fruto do excesso de uso nos anos 80, associado à má qualidade da rede electrica da região. Um remix raro. Segurava um cigarro no qual apenas tinha inalado uma vez. A gravidade dobrava a cinza. Mirava um ponto algures entre si e o tecto. Tinha o coração apertado, a respiração pesava-lhe.
Da memória não conseguia afastar o momento em que um paramédico espetou uma enorme agulha no coração dela. Uma facada para o esquecimento. Conseguiu ver a última exalação que dela saíra. Aquela que transporta a alma, que a desloca do corpo a caminho do grande desconhecido.

Guardava apertados na mão algumas notas que ela lhe tinha deixado no frigorífico nesse dia. "Somos apenas carne ou somos prisioneiros celestiais encarcerados em carbono com um pacote de restrições?". "Não acredito... Se parar, morro...". "O teu silêncio é de eloquência máxima num púlpito. O público são os milhões de desdobramentos de mim própria, na multiplicidade de negações, desejos e repressões. Êne factorial elevado a qualquer coisa eus".

Compreendia dolorosamente o significado de "para sempre". A eternidade é matemática e o Homem é a negação da lógica. A eternidade é o pretexto que nos prolonga as acções. É preguiça emocional. Disse-me ela uma vez: "É como se estivesses à conversa com a vizinha confiante no atraso do autocarro e, nesse dia, ele vem a horas"