Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Sandes de paio
“As portas do céu e do inferno são adjacentes e idênticas”

Encostada contra a parede, chorava. Ainda segurava a faca ensanguentada que fumegava devido à baixa temperatura. Olhos vazios e sujos de lágrimas. O seu olhar trespassava a velha parede forrada a papel e vislumbrava o horizonte da cidade. Lá longe era capaz de ver os anjos. Os mesmos anjos que a rodeavam constantemente encorajando-a a libertar-se estavam agora sombrios. Choravam como ela. Os anjos estavam enegrecidos pelo passar da culpa. “A culpa de anjo é mais pesada”, gritavam ao longe.
Ela pousara o braço no chão, sem forças, no entanto não conseguia soltar a faca de cozinha. O sangue já penetrava o velho chão de madeira, que o absorvera e ficou castanho da fusão. “Sangue em madeira velha, o cheiro típico de sábado à noite”, pensava ela. Os seus anjos, caídos em desgraça, perdem as asas. Aos poucos a carne é corroída e as finas membranas apodrecem. Os ossos transformam-se em pó e os anjos em homens. Homens que nunca deixaram de o ser. Um erro burocrático iniciado há décadas aquando da confusão da Sandes de Paio. A famosa síndrome da sandes de paio.