Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

quinta-feira, abril 29, 2004

Ensaio K23.5b: Abril

Abril
foto por Pedro (Creative Commons License) - 2004

terça-feira, abril 27, 2004

Mente multidimensional

Era sobre aquele paredão de rochas matematicamente posicionadas que um velho pescador se deslocava diariamente para meditar um pouco. Lançava a sua cana de pesca e ali ficava a pensar na vida passada. Sorria sozinho a recordar bons tempos com deleite. Ocasionalmente largava uma lágrima quando as recordações assim mandavam. Revivia ali todos os momentos chave da sua vida, além daquelas situações insignificantes que ficam coladas no cérebro, talvez fruto de alguma anomalia do processo de arquivo. Era cinema 3D para quem tem o poder.

Um dia, a meio de uma recordação de uma qualquer banalidade conjugal percebeu que a pessoa que aparecia recursivamente nas suas memórias matrimoniais não era a sua esposa, era uma vizinha que observava ocasionalmente com uns binóculos. Aproveitou para verificar também alguns detalhes da casa onde morava e reparou que aquilo era o escritório de advogados onde trabalhara 27 anos como auxiliar de escriturário. Nada daquilo estava correcto, eram memórias artificiais.

Passados 30 minutos esquecia-se novamente de tudo e recordava as mesmas coisas com igual emoção, até ao dia seguinte, por volta das 16:36, em que voltaria a ter a percepção que as memórias eram artificiais. E assim passava os seus dias, a pensar que em tempos teria sido um grande pescador, quando na realidade tinha sido caçador. Julgava que os maus resultados da pesca se deviam à poluição nuclear de um cataclismo que nunca existiu, mas que se recordava vividamente nas suas memórias postiças.

sexta-feira, abril 23, 2004

Este post foi minimizado

Violation of PRIMARY KEY constraint
Delírios da madrugada

## CREATE PROCEDURE Post_sem_sentido_001 @post_IN varchar(4000) AS ##

Era uma vez um homem sentado em frente a uma rack de Powervaults, Poweredges, SmartUps, Optiplexs, DiagnosticPros, Presarios e outras merdas com imensos números e letras, sendo destas o X, V, Z, W as mais populares. Escarafunchava tretas numa base de dados, armado em garimpeiro de números preciosos, sem sentido, que quando associados a outros, que aparecem no diário da república e tudo, fazem o "Milagre do Registo Sem Erros" (vulgo MDRSE).

Rodeado de monitores de LCD com efeito LSD a altas horas da madrugada. Ping, blink, poing, trim, "7 rows will be affected by this statement", "[ODBC SQL Server Driver][SQL Server]Violation of PRIMARY KEY constraint 'CENSURADO'. Cannot insert duplicate key in object 'CENSURADO'."

Entretanto, milhares de watts de potencia de ventoínhas, coisas que fazem vrumm, tzzzzz, huíííí e aqueles sons das articulações do robocop aglomeram-se atrás dele que já imagina sons e códigos a emergir daquela cacofonia. Um código de barras mira-o nos olhos como que a dizer "estás a pensar roubar-me, é? olha que isto não é teu!". Paranoicos como sempre, estes códigos de barras. Control Freaks.

/* end statement

quarta-feira, abril 21, 2004

Masanao Yamazaki e os ninjas dos Alpes
Mais histórias de gajos deprimidos, sentados no sofá a pensar em qualquer coisa que não interessa a ninguém.
Série B oriental


Sentado no sofá a rasgar fotografias por sugestão do seu psicólogo, Masanao tenta erradicar as memórias físicas de tempos menos bons. Enquanto ouve o carro da sua namorada partir para não mais voltar, chora e lembra os factos que aconteceram 20 anos antes.

[flashback]

Masanao, um jovem enfezado e míope, vivia com os pais num minúsculo apartamento em Shinagawa, arredores de Tóquio. Masanao tinha problemas na escola onde era ridicularizado e humilhado. Frequentemente era espancado no caminho para casa por colegas disfarçados com máscaras de ski. Masanao não era o único miúdo franzino e feiote da escola, mas era frequentemente visto como uma criança pouco inteligente e pouco faladora. Basicamente era um idiota. Não era anormal nem retardado, era simplesmente idiota.

A origem da má fama de Masanao remonta a uma apresentação de um video educacional, em 1982, aquando da projecção de um segmento promocional do turismo de neve na Suiça, um interlúdio entre uma sequência animada do sistema digestivo e uma animação stopmotion de um worst case scenario de uma colisão entre a terra e um asteróide que se desprendera de um cometa ficcional. Ora, no final da sequência, Masanao coloca um dedo no ar e pergunta se na Suiça existem ninjas. Um forte silêncio se abateu sobre a sala. Entre risadas abafadas e estupefacção geral, a professora pergunta: "Ninjas?". Num movimento brusco tipicamente japonês reprimido, Masanao diz: "Sim, aqueles que andam na neve". Toda a gente compreendeu que Masanao confundira ninjas com esquiadores. Coisas de criança, mas como putos que se prezem, a crueldade não se fez esperar e Masanao ficou para sempre com a marca de idiota na testa.

Ao chegar a casa nesse mesmo dia, Masanao encontra a sua mãe, Keiko, a injectar heroína numa veia do pé. Em cima da mesa do quarto, uma foto de família deitada com um pesado arsenal de utensílios de heroínomano. Daquelas fotos 30x20 num dia de sol, com roupas de domingo. Foge de casa a correr e a chorar. No caminho para parte incerta foi novamente apanhado pelos tipos de máscaras de ski que lhe ofereceram 3 semanas de hospital com respiração artificial incluída.

[fim de flashback]

segunda-feira, abril 19, 2004

À sombra de um deus de luz
Pesadelo para ler a preto e branco

Perez, um jovem guatemalteco com 15 anos, voltava a casa ao final do dia com as cabras de seu pai. Ao passar ao lado de uma plantação de café, dirigiu-se a um dos seguranças. Pediu mais uma vez para ver a sua arma. Era uma daquelas que queria para o aniversário dos 18 anos. Voltou ao seu caminho. Afinal ainda faltavam uns quilómetros a percorrer, apesar de já se verem os subúrbios de Mazatenango ao fundo. Daquele ponto da montanha quase que podia ver o mar, pensava. De repente as cabras entram em alvoroço. Olhou para o horizonte onde pode ver um enorme cogumelo disforme, muito além da zona urbana. Beijava o céu e afastava as nuvens. Passados uns segundos, ouve uma enorme som seco que o ensurdeceu. A base do cogumelo alastrava a uma velocidade vertiginosa. Podia ver que aquele circulo de fogo brevemente o ia apanhar. Podia ver claramente que o circulo era cinzento, com algum focos alaranjados a crepitar, e o seu perímetro era vermelho fogo, de todas as árvores que ia dizimando selvaticamente. Pode perceber que tinha pouco tempo de vida e não pode deixar de pensar na sua Cristina que certamente já jazia calcinada num túmulo de cinza. O último pensamento antes de ser abraçado pela infernal orla cavalgante foi o noticiário que ouvira na rádio minutos antes e como a concorrente guatemalteca teria fortes possibilidades de ser Miss Universo este ano.

Planeta Pão de Ló
Nascidos numa era de pânico

Sentado no chão, em frente à lareira, com a respiração suspensa. O coração a sair-lhe pela boca enquanto, incrédulo, continuava a atribuir tudo a uma espécie qualquer de divina previdência. Viver num país estranho sem a devida licença é chato e complicado. Mesmo para alguém que sempre fez da retórica uma forma de vida. Apanhar guardas ligeiramente ébrios torna as coisas mais fáceis, mas quem diria que arranjar uma desculpa baseada num misto de vantagens de sexo na banheira e aquela teoria psico-sociológica que diz que todos os contra-baixistas sofrem de uma doença social que leva as pessoas a querer compulsivamente tocar contrabaixo iria pegar?

Levantou-se e, trepidante, colocou no leitor de CDs o volume 3 do Black Box of Jazz. Levantou a camisola e acariciou ligeiramente as cicatrizes daquela queda em 1987, quando experimentava uma posição ousada na banheira e o seu pé escorregou no bidé. Sorriu e sorveu mais um trago de Johnny Walker.

domingo, abril 11, 2004

Obsessões [2]
O caçador de padrões

Alberto. Uma vez viu umas manchas verdes num filme em DivX que sacou da internet que lhe pareceram ser Bush a enrabar um ponei. Com um pouco mais de trabalho, compilou todos os hiss's e click's do filme e colocou tudo num único ficheiro de áudio. Compreendeu depois que ao inverter aquele ficheiro, havia uma mensagem escondida sob a forma de coordenadas de uma matriz bidimensional e cujos dados que preenchiam essas coordenadas poderiam ser encontradas nos hiss's e click's da parte 2 do filme. Depois de ter o tamanho da matriz, as coordenadas preenchidas e os valores de preenchimento, encontrou um padrão. Usando um compilador Befunge (linguagem de programação pouco vulgar e obscura) descobriu que se tratava de uma string em dialeto urdu que dizia "Cortei os pés em diamantes que poluiam o lodo do fundo do lago que atravessava". Curiosamente, seu pai tinha-lhe já falado nessa frase. Encontrara-a cravada numa carcassa de Gnu a golpes de pedra lascada e meio comida por chacais...

segunda-feira, abril 05, 2004

E.A.F.O.C.Q.N.D.D.T.T.E.T.S...
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Disse o corvo sonolento:
- Nao queres nada escrito na tua sepultura?
- Não. Nem caixão. Quero lençois brancos.
- Então o que deixas neste mundo?
- Apenas os ossos e meia dúzia de mágoas...

sexta-feira, abril 02, 2004

Choque de culturas
Chill Out pré-dormência de fim de semana chuvoso

Alguma vez vos contei a história do homem apaixonado pelo mundo? Um homem que passava a vida em êxtase a contemplar as maravilhas da natureza, um homem que vivia num estado idílico embriagado por excesso de poesia, um homem que via arte nos mais subtis detalhes da banal rotina do dia-a-dia. Um homem rendido às obras literárias e à pintura distorcionista franco-espanhola do início do século XX.
Um dia foi atropelado por uma carrinha de distribuição da DHL, conduzida por um jovem de t-shirt dos Sepultura rebentava as colunas com "Bulls on Parade" dos Rage Against The Machine, enquanto procurava um isqueiro no porta-luvas. Uma cópia ensanguentada de "Noites Brancas" de Dostoievski foi encontrada na carrinha, com um separador na página 36.