Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
dubois@aeiou.pt

quinta-feira, janeiro 29, 2004

Desenquadramentos

Numa ruminância estranha, conduzo ausente. Por momentos o ambiente urbano é substituído pela velha estrada do campo, ladeada de árvores de folhas largas e ramos compridos e frondosos. Por momentos sinto os raios intercalados de sol a programar-me o cérebro como um estranho código de barras. Por momentos sinto-me absorvido pela cortada luz imaginária e não deixo de pensar nos putos japoneses que tiverem ataques epilépticos a ver o Pokemon nos saudosos anos 90. Volto à realidade mesmo a tempo de evitar uma idosa incauta que se lembrou de atravessar na diagonal o maior cruzamento da cidade.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Coimbra, esse polvo invisível

Coimbra, uma cidade que abraça com calor, uma cidade que sufoca... 3 da manhã. O jardim botânico olha-me de soslaio, maroto. Eu sei o que ele diz... Diz-me "a estas horas gostas de passar pela praça da República, gostas de contornar a rotunda do Papa". É verdade, jardim! És capaz de ter razão. Esta cidade que me sufoca, que implode a cada dia que passa... Uma cidade decadente com síndrome de El Rei D. Sebastião, uma cidade que adoramos ver decair. Com a idade e a experiência, advêm a autoridade de dizer "No meu tempo, blá blá...". Porque Coimbra, para quem não sabe, é composta por pequenos Fenixes. Nada de novo aparece, tudo renasce das cinzas anteriores, mas com uma pequena debilidade acrescida. A cidade dos estudantes, a cidade da queima... Títulos que ganhou e que manteve. Títulos... Meros quadros poeirentos com diplomas de outrora pregados numa parede de uma sala isolada...

Coimbra exala um feitiço subtil que envolve como um polvo gigante.

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Polaroid tremida





Merda!... O que faço eu aqui com a cabeça encostada ao chão da calçada suja com uma bota Dr. Martens (modelo 7713 de 2003) a esborrachar-me o crânio? Porque raio está um bastão de Basebal aqui parado mesmo em frente num equilíbrio delicado? Daqui o mundo rodou 90 graus e as leis da gravidade não funcionam. As leis da lógica também não se aplicam muito bem. Mas isto sou só eu a pensar, claro. Até porque um tipo de 150 kg e apertar-me a cabeça contra a estrada tende a limitar bastante a capacidade de raciocínio. As vozes misturam-se com o som tipicamente confuso das 6 da madrugada depois de alguns copos. Há gritos. Sei que há gritos, mas não me parecem ser meus. Um clarão ligeiramente alaranjado projecta a minha sombra dançante contra um velho plátano, com 3 gerações de declarações de amor cravadas a navalha.

Ali em frente um corpo contorce-se em movimentos reptideos e os sons que se esvaiem de si confundem-se com a mota que o contorna, como se fosse mais obstáculo da estrada. Também está deitado e sou capaz de jurar que não se sente muito bem. Existe uma ligeira descoloração daquilo que vejo, mas o vermelho que lhe sai da boca não engana. Apenas vejo o dióxido de carbono quente que exala e cria pequenos hoovercrafts de vapor que o abandonam depois de alguns décimos de segundo. A minha orelha arde que se farta. É estranho como penso que devia lavar os dentes, pois esta rugosidade do sujo está a incomodar-me a língua.


terça-feira, janeiro 20, 2004

Guião para o esquecimento

Um mastodonte de poder, diziam alguns. Um crápula facínora, diziam outros. Ora bolas, ninguém se entende, dizia outro, no canto. Tu aí... No canto... O que achas? Multidão em coro como nos filmes. Eu?! Visualizem o James Dean nesta expressão, é mais fácil e não requer muita descrição. Sim... Tu ó... ó... como é que te chamas mesmo? Multidão no gesto repetido de ali atrás. Sou o Euclides, responsável pelo Gabinete de Privacidade e Segurança de Dados do Departamento. Vitorioso. Nunca ouvimos falar! Multidão recua apenas as cabeças. Ora, por isso mesmo somos uma comissão de sucesso. Koniek em voz off...

domingo, janeiro 18, 2004

Memo

Já tudo foi dito, já tudo foi ouvido, já tudo foi chorado, já tudo foi lamentado. E depois? Notam alguma diferença?

quarta-feira, janeiro 14, 2004

O Yuppie da semana

Alfredo era intelectual. Óculos de massa e tudo! Alfredo lia e gostava de comentar as suas brilhantes conclusões literárias com os amigos. Com medo da concorrência, nunca se metia com outros intelectuais da pesada, porque Alfredo apesar de conhecedor, era moço de poucos conflitos. Alfredo gostava de poesia. Daquela bonita, em que não é preciso compreender, mas apenas perceber que cada um tira as suas conclusões. Pelo sim, pelo não, lá lia uma crítica no jornal da especialidade.... Era rapaz precavido! Alfredo era sensível e tolerante. Era capaz de chorar, mas no local certo, porque ninguém gosta de ser chingado de paneleiro. Alfredo era multicultural e solidário. Alfredo ouvia World Music, comprava discos da Ananana e achava os La Fura del Baus muito comerciais. Alfredo falava francês e tocava piano (duas músicas, de ouvido).

Um dia, ao fazer um zapping pela nova 2:, viu uma publicidade institucional de uma campanha de solidariedade para um país de África. Um dos que fala português. "Dê tudo o que não precise", dizia a senhora da doce voz off. Alfredo tinha lido sobre isso no Público no dia anterior. Invadido pela comoção, decidiu doar um item que adorava, mas não mais usava. No dia seguinte enviou pelo correio para aquele apartado qualquer coisa codex a sua obsoleta objectiva AF 28-200mm F3,5-5,6 Compact Hyperzoom Aspherique Macro para Minolta.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

Sem direcção definida
A caminho do grande vazio

Tempo livre. Parado no topo de uma grande superfície comercial a apreciar o movimento dos corpos. Panorâmica. Por fora o movimento cria uma desfocagem por arrastamento e os corpos ficam distorcidos pela sobreposição dos movimentos. O arrastamento provoca transparências. Acendo um cigarro. A cacofonia em fade-out é substituída pelo crepitar das folhas secas de tabaco geneticamente modificado. Curiosamente a velocidade aumenta do lado de fora. Agora o turbilhão de corpos é substituído por um borrão quase transparente que desenha linhas de rota. Por dentro dançam nicotina, arsénico, benzopireno, alcatrão, cádmio ao som de Stan Getz. Cada pessoa = uma vida. Uma vida com problemas, alegrias, paixões, amores não correspondidos, segredos negros, uma pequena perversão pessoal e todos esses pequenos componentes que fazem de nós únicos. No entanto, o borrão disforme do movimento contínuo, o vazio no olhar, a vontade de chegar rápido a um local onde depois se espera desesperadamente. Coisas que transformam todas as criaturas magníficas numa amálgama de carne sem identidade. Apenas matéria que vem desde o Big Bang a saltar de forma em forma, de molécula em molécula, e que um dia acabará por fazer parte de outro qualquer corpo num outro qualquer ponto do universo. Sem memória de ter passado um pedaço de nada num corpo que terá uma vez sido uma entidade única e consciente.

quarta-feira, janeiro 07, 2004

Até ao fim do mundo

Até ao fim do mundo
foto por Pedro (Creative Commons License) - 2004

terça-feira, janeiro 06, 2004

A inutilidade da glória

Se notares que os teus raciocínios são cada vez mais geniais, que cada vez menos pessoas têm argumentos para te contrapor, se o silêncio da vitória se fizer ouvir depois da exposição da tua opinião, caro amigo, estás a falar sozinho.

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Dizia ela no sono:

Desfaz-me a personalidade à força de chapada e terrorismo psicológico. Lobotomiza-me... Eu gosto!

As estrelas falam numa estranha melodia

Ainda surpreendida, contava a todas as suas colegas o que se tinha passado com ela essa manhã. Depois de ter passado uns minutos a trautear a música de abertura do Pulp Fiction, ligou a TV e passavam um documentário de snowboard com a música que tinha cantarolado antes. Ficou perplexa, suspeitou mesmo que se tratavam de poderes extra-sensoriais. No dia anterior teria visto nos padrões dos azulejos do WC a imagem de um gladiador a matar um tipo vestido de coelho de páscoa. Tudo em tons sépia. O horóscopo tinha-lhe dito para ter cuidado com compras supérfluas, que de imediato associou ao casaco de peles que andava a namorar há algum tempo.

Irritava-se consigo própria cada vez que pensava nestas coisas, pois anos atrás acabara uma relação prolongada baseada numa informação astrológica, uma carta astral que lhe custou os olhos da cara. Preferia pisar uma bosta de cão a passar por baixo de uma escada. Mas hoje, neste novo ano, tudo iria acabar...

Viver dos rendimentos

Until the 20th century, reality was everything humans could touch, smell, see, and hear.
Since the inital publication of the charged electromagnetic spectrum, humans learned that what they can touch, smell, see, and hear...is less than one millionth of reality.