Submersos em formol numa garrafa translúcida sem rótuloA Hiper-Realidade ao pintelhoIa ela linda pela rua, confirmando a firmeza do seu rabo nas montras semi-reflectoras da baixa. Alguma luz passava para dentro das lojas, outra era reflectida. A ordem com que os fotões eram reflectidos para as suas retinas era perfeitamente aleatória. Chamam-lhe a teoria do caos.
Foi um grupo de fotões escolhidos pelo acaso que penetrou numa montra gigante de uma loja de animais. Ele estava dentro e reparou nessa imensa quantidade de luz que veio de encontro a si. Saiu a correr, passos largos que associados a todas as velocidades relativas, tendo em conta o modelo universal tal como o conhecemos, só não se desintegrou porque a gravidade o puxou ao seu referencial rotativo.
Aproximou-se e falou-lhe em códigos de outrora. Falou-lhe trémulo. Já alguns ciclos de irrigação sanguínea tinham por ele passado quando ficou acordado um encontro. Num café ali ao lado. Imediatamente. Longa foi a conversa. Acto mecânico. Vibrações de cordas vocais, articulações e músculos que se coordenavam, tentando passar a mensagem. A delicadeza e sensibilidade da perfeição. A imagem perfeita atirada a uma alma ferida em busca de protecção.
A mensagem passou.
Dois anos, três meses e vinte e oito dias mais tarde.Ela chora na cama, sufocada pelos espasmos e pelo aperto do seu coração. Numa mão segura o frasco enquanto pondera o que fazer. Na memória a imagem dele, a ir de encontro a mais uma alma ferida em busca de protecção. De longe ela viu novamente o acto mecânico. Na terceira pessoa. Ela viu o café e o encontro. Viu o olhar submisso da outra alma e a mecânica manipuladora dele. Predador. Actor profissional. Cabrão. Pensou ela... Na cama ponderava o uso do frasco. Na outra mão o anel de casamento, ainda a brilhar da frescura de uma semana de uso.