Há que documentar o vazio. Agora também em mármore!
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quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Um eco simétrico

"Quem queria que fosse para aquela casa comigo, não vai. Vai outra! ". Uma frase que ecoa aos confins da minha mente. Dopplerizada até ao eco inaudito. Porque raio uma questão social não se suplanta à genética? O poder da educação é forte e não pode nunca ser subestimado. Educação social que na sua não existência é também por si educação.

Ouvi esta frase incrédulo. Sem forças para ripostar. Era como se tivesse andado a ensinar durante anos alguém a comportar-se correctamente face a uma tempestade de relâmpagos, e na altura do primeiro caso real, essa pessoa correria para o topo da montanha com um ferro de 5 metros erguido.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Uma família feliz
Referência ao grotesco (desenquadrado-da-realidade-como-que-a-piscar-o-olho-ao-ridículo-ou-ainda-um-hino-aos-tocadores-de-trombone-profissionais)

Célia tem mãe mas não tem pai. O pai de Célia não existe, mas mora a 12 quilómetros. A mãe de Célia não tem marido mas mora com um homem a quem Célia chama pai. O pai que existe não gosta de Célia. Célia não tem irmão, mas o pai de Célia tem um filho a quem Célia chama pelo primeiro nome. A mãe de Célia não tem filho mas tem filho. O pai que não existe não conhece o pai que existe, por respeito à lei da anti-matéria. A esposa do pai que não existe não é casada e não tem filhos. Não conhece Célia. Mas Célia conhece a esposa que não existe do pai que não existe. Célia chora apenas em frente do irmão que não é irmão. A mãe de Célia chora em segredo, canalizando telepaticamente as suas lamúrias ao marido que não o é e que não existe como pai da sua filha. O marido que tem é intermitente e olha Célia apenas do pescoço para baixo. A mãe de Célia sabe coisas mas não conta.

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Sandes de paio
“As portas do céu e do inferno são adjacentes e idênticas”

Encostada contra a parede, chorava. Ainda segurava a faca ensanguentada que fumegava devido à baixa temperatura. Olhos vazios e sujos de lágrimas. O seu olhar trespassava a velha parede forrada a papel e vislumbrava o horizonte da cidade. Lá longe era capaz de ver os anjos. Os mesmos anjos que a rodeavam constantemente encorajando-a a libertar-se estavam agora sombrios. Choravam como ela. Os anjos estavam enegrecidos pelo passar da culpa. “A culpa de anjo é mais pesada”, gritavam ao longe.
Ela pousara o braço no chão, sem forças, no entanto não conseguia soltar a faca de cozinha. O sangue já penetrava o velho chão de madeira, que o absorvera e ficou castanho da fusão. “Sangue em madeira velha, o cheiro típico de sábado à noite”, pensava ela. Os seus anjos, caídos em desgraça, perdem as asas. Aos poucos a carne é corroída e as finas membranas apodrecem. Os ossos transformam-se em pó e os anjos em homens. Homens que nunca deixaram de o ser. Um erro burocrático iniciado há décadas aquando da confusão da Sandes de Paio. A famosa síndrome da sandes de paio.

O demónio e os irmãos Grimm

Passeava Paulo Coelho na margem de um belo lago, coçando a barba e admirando o seu reflexo nas límpidas águas, quando lhe aparece um demónio.
- Boa tarde Paulo, tudo bem?
- Vai-se andando, demónio. Sabes como é, os ossos já não são o que eram e...
- Pois, pois... Olha Paulito, não leves a mal, mas trago-te aqui umas coisas. É uma revista do círculo de leitores e a Ana Mais Atrevida. Sabes, o pessoal já está um pouco farto dessa merda mística e era para ver se mudavas um pouco de ares. Sei lá, mais violência e sexo... Coisas assim.
- Hã? Mas?...
- Sabes, eu sou apenas demónio em part-time. Sou também responsável de limpeza da Bertrand e o vomitado nas estantes de demonstração tem-se demonstrado algo prejudicial para o negócio.
- Epá! Desculpa, mas não admito que...
- Sou apenas o mensageiro, miúdo. Vou andando. A gente vê-se depois lá em baixo.

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

O ermita moribundo e seu rebanho mutante

Ao final da tarde, o velho desconfiado saía da sua toca e espreitava mais um glorioso pôr do sol. Gostava de ver os raios solares a perfurar a densa atmosfera na diagonal. Adorava aquela dolorosa peregrinação de fotões inquietos, armados de capacete, ao estilo de espermatozoides sem destino. Os James Dean dos fotões. O velho ali ficava sentado a imaginar conversas com aqueles viajantes que, iguais aos outros, eram do tipo de proletariado que trabalha no duro. Ali, gás após gás, chuva de radiações adentro, enganadores de gravidade e infinitos saltitantes. O bunje jumping quântico. Não faz perguntas, mas também não precisa de respostas. Ser e apenas ser, nada de esoterismos nem infindáveis epopeias científicas. Ali era apenas matéria voadora, rápida. Honrada e cumpridora da sua função. O velho sorria com o que os seus velozes companheiros lhe contavam. Depois de passar o dia a imaginar nomes para lhes dar, perdia-se com a velocidade e baralhava-os todos. "É que a beleza do fotão...", dizia, "... é ser tão omnipotentemente visível que ninguém os vê!".

domingo, fevereiro 08, 2004

Descendo a escala de cinza

Descendo uma escala de cinza

foto por Pedro (Creative Commons License) - 2004

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Polaroid #2

Na mesa 7, uma miúda chora num soluçar contagiante. Olha para o companheiro, frio, que não tira os olhos de um jogo de futebol que passa na TV. A miúda, visivelmente aflita, espera por uma palavra salvadora, uma resposta qualquer que acabe ali com todos os problemas. Do outro lado da mesa está uma criatura paralisada a olhar para uma TV. A miúda engole em seco e franze as sobrancelhas num pedido de ajuda. A resposta vem sob a forma de "Golo!". Entre a mesa 10 e 12 passa um estranho sujeito, que manca ruidosamente. As suas roupas gastas são descoloradas e sem brilho, o que lhe dá um aspecto transparente. Talvez ajudado pelo jogo que passa na TV.
Na mesa 3 um garoto afia um lápis contrariado. Resmunga porque os seus colegas têm porta-minas. O seu pai esboça um olhar ameaçador de meio micro-segundo, voltando a cara para a TV. Ninguém fala à excepção do dono do restaurante, que murmura qualquer coisa com a cabeça enfiada para dentro de um buraco que toda a gente supõe ser a cozinha. Ouvem-se moscas a fritar naqueles tenebrosos candeeiros azuis, o holocausto entomológico.